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A Ceia Indigesta

Por que você não é obrigada a sentar na mesma mesa que o seu agressor neste Natal


Por Mayhumi Kitagawa, CEO SouPagu



Tem uva passa na maionese, tender no forno, luzes piscando. Para o mundo, o Natal é sinônimo de magia. Mas, para mulheres (e como psicóloga, afirmo que são muitas) que carregam no corpo a memória de uma violência sexual sofrida na infância ou adolescência, o Natal pode ser o gatilho mais violento do ano.

Existe uma regra silenciosa e forte nas famílias brasileiras: em dezembro, decreta-se a anistia geral. Afinal, "é Natal" e "ele é seu tio/primo/padrasto/amigo da família".

Mas o abuso não passou. Ele vive no seu corpo e na sua mente. E obrigar uma vítima a conviver com seu agressor em nome da união familiar não é espírito natalino; é sofrimento.

Em certos momentos, não vivemos as batidas do relógio, e sim as batidas do coração. Vou te explicar: quando o trauma é acionado, nossa mente rompe o "aqui e agora", rasga a linha do tempo e passa a funcionar guiada pela memória. Ou seja, para uma mulher que está sentada na frente de um agressor hoje, ela pode, neurologicamente, estar de volta ao tempo da violência vivida.

Nesse instante, seu corpo grita imediatamente: PERIGO!

O trauma altera a função biológica. Você não está sendo dramática, realmente tem muita coisa acontecendo dentro de você! O coração acelera, o suor vem frio, ou surge um embotamento (aquela vontade de não conversar, uma apatia profunda). Tudo isso, na verdade, é um sinal de saúde. É o seu corpo sendo claro e tentando te proteger, alertando que você está perto de uma ameaça.

Se tudo isso é biológico, por que é tão difícil dizer "não" para o Natal do pacto de silêncio?

É triste, mas na nossa sociedade patriarcal, a instituição "Família" é frequentemente mais importante e valorizada do que a segurança das mulheres e crianças que a constituem.

Muitas vezes, o agressor é uma figura de poder ou de carisma dentro de casa. Confrontá-lo ou excluí-lo exigiria que a família inteira olhasse para suas próprias falhas e negligências. O mito da "família margarina" derrete neste ponto, e muitas pessoas preferem o conforto da ilusão colorida do que a dureza da verdade.

Diante disso tudo, o que posso dizer é que a sororidade deve começar por você mesma. Vou te convidar para exercer um ato de rebeldia: impor limites. E para isso acontecer, antes, é preciso fazer uma avaliação de risco real de o quanto esse encontro pode te colocar em situação de sofrimento.

"Aaah... mas e o perdão?" O perdão é um processo interno e, o que muitos esquecem: opcional. Ele não exige convivência, e muito menos amnésia.

Eu sei, esse texto foi duro. Mas a realidade de milhões de mulheres brasileiras é dura. O patriarcado nos ensinou a sermos "boas meninas", a engolir o choro e servir o sorriso. Mas atuando como mulher, e liderando a SouPagu, ficou nítido para mim que existem coisas impossíveis de engolir. A violência é uma delas.

Neste Natal, desejo que seja possível presentear sua criança interior protegendo-a. Se a mesa da família é adoecedora, construa a sua própria mesa, dentro dos seus próprios limites.

Você não está sozinha. Acreditamos em você.


 

 

Bastidores da Construção

 

Este conteúdo foi motivado e embasado no encontro do Colab SouPagu + Instituto Sou Capitu. O grupo reuniu psicólogas credenciadas para aprofundar estudos e práticas clínicas sobre os impactos da violência sexual na infância e adolescência na saúde mental da mulher adulta.

 

A apresentação do primeiro ciclo da Colab será apresentada dia 12 de dezembro de 2025.

 

Direção do Colab: Psicóloga Brenda Souza. Psicólogas participantes: Kimberlli Moraes, Mariane Carvalho, Clarice Jardim, Eduarda da Silva, Daniela Porto, Grace Santana, Raissa Vicentini e Renata Gabriella.




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